Rafael Capurro concede entrevista ao blog Dissertação Sobre Divulgação Científica
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Foto: Facultad de Información y Comunicación/Instituto de Comunicación |
Um dos mais citados e principais pesquisadores da Ciência da Informação concedeu entrevista ao blog Dissertação Sobre Divulgação Científica, com o objetivo de expor pensamentos, ideias e discussões em geral que envolvem a chamada Sociedade da Informação e, como ele mesmo diz, a Sociedade de Mensagens.
Professor e pesquisador da Escola Superior de Mídias de Stuttgart, na Alemanha, o filósofo uruguaio Rafael Capurro, 69 anos, tem dedicado os seus estudos sobre a ética e a informação, abrangendo aspectos variados. Entre os temas abordados durante a entrevista estão: as dinâmicas do modo capitalista de produção, a informação em si, a política e a democracia na contemporaneidade, o papel das recentes redes sociotécnicas, os conflitos entre noções de público e privado, entre outros.
Confira a entrevista:
É possível definirmos uma ética contemporânea da informação? Em que se basearia?
Capurro:
Se entendermos por ética, com Michel Foucault, a
problematização da moral, ou seja, das normas, valores e costumes (em latim, mores), podemos definir uma ética
contemporânea da informação como a problematização das morais comunicacionais,
ou seja, das regras comunicacionais explícitas ou implícitas nas diversas
sociedades. Estas normas morais estão, em parte, sancionadas por
leis nacionais, assim como por acordos e declarações internacionais geradas, também, na época pré-digital.
A rede digital global e interativa cria novas
formas de comunicação e informação em todos os âmbitos da sociedade, com novas
regras e novos valores que, às vezes, entram em conflitos com os sistemas morais
e legais do período pré-digital.
É por isso que uma reflexão
crítica, local e globalmente, é imprescindível se quisermos evitar que sobressaia a lei do mais forte ou simplesmente o mero costume. Por outro lado, uma ética contemporânea da informação deve
considerar os desafios relacionados com
a digitalização, não apenas na área da comunicação, mas também em todos os
segmentos da ação humana. A ética da informação contemporânea tem que se basear em uma reflexão crítica histórica, a fim de permitirmos reconhecer e relativizar
as cegueiras e obsessões das sociedades contemporâneas da informação. Portanto,
além da informação e da comunicação nos meios digitais, é importante
incorporamos também outros meios e épocas.
O senhor já expôs que, segundo o conceito filosófico
clássico e metafísico, a informação pode ser entendida como formação de um
espírito. Principalmente na contemporaneidade, é possível identificar de que
espírito se trata, ou pelo menos a tendência de sua formação, dada a pluralidade
sociocultural dos nossos dias?
Capurro: O termo latino informatio, em seu sentido de dar forma
a algo, já era utilizado na antiguidade clássica, assim como na filosofia
medieval, não apenas na perspectiva de dar forma ao espírito ou ao caráter de
um indivíduo, mas também aos costumes e normas de uma sociedade (informatio morum). Ambos os sentidos da
ética clássica da informação estão baseados em uma epistemologia segundo a qual
o conhecimento é um processo de formar os sentidos (informatio sensus) e a razão (informatio
intellectus).
Os filósofos e teólogos
medievais, como Tomás de Aquino, distinguiam também no nível ontológico entre creatio, ou seja, a criação do mundo por
um Deus transcendente, e informatio, ou
seja, o processo de “in-formação” de um substrato já existente (informatio materiae). Informatio é uma tradução latina sobre
problemas considerados pela ontologia e pela epistemologia gregas, em especial
por Platão e Aristóteles, mas também pelo neoplatonismo e pela filosofia
helenística. Forma é o equivalente a
conceitos-chave filosóficos, tais como eidos,
idéa, morphé e tipos. Toda
tradução abre novas perspectivas, mas inescapavelmente obscurece matizes e
contextos originais.
A pluralidade sociocultural ocorria
também em outras épocas. É interessante investigar como os conceitos e as
teorias gregas foram sendo traduzidas, atingindo as culturas persas, árabes e
judias medievais.
A situação atual de uma
pluralidade de culturas que interagem na rede digital tem a potencialidade de
criar uma nova forma de universalidade ética pluralista, que alude à pergunta
“de que espírito se trata?”. Creio que seja um espírito plural, em que os espíritos, seguindo também a tradição metafísica ocidental, sempre interagem
no mundo digital. Mas, a esfera digital se entrelaça cada vez mais com a esfera
física, conduzindo à “Internet das coisas”, que sempre é também uma Internet
das pessoas, com os seus condicionamentos históricos, geográficos, políticos
etc.
A rede digital e as
possibilidades de existência no século XXI podem ser pensadas não só em sua
forma superficial, mas também em sua profundidade, o que significa descobrir
quem são os atores humanos e a forma da sua autocompreensão. As formas, valores e normas de interação e reconhecimento
são objeto de reflexão ética desde a antiguidade, com variações, também, na era
digital.
Assim, o espírito do século XXI
materializado, física e digitalmente, pode ser pensado enquanto possibilidades
de interação na rede, com perspectivas novas de ser com os outros. Este caminho
vem sendo delineado desde o século XIX, com as oportunidades de viagens pelo
mundo em transportes modernos, especialmente a aviação. Porém, a rede
possibilita a uma maior quantidade de pessoas se comunicarem sem deslocamento
físico e de forma economicamente acessível.
No entanto, assim como no caso
dos meios de transporte de massa, estas novas dinâmicas não significam por si a
realização de diálogos e mútua compreensão intercultural, pois o cenário pode
desdobrar para outros caminhos.
Mais sobre o assunto:
http://www.capurro.de/info.html ou http://www.capurro.de/leon.pdf / http://www.capurro.de/iran.html
Mais sobre o assunto:
http://www.capurro.de/info.html ou http://www.capurro.de/leon.pdf / http://www.capurro.de/iran.html
Como as dinâmicas e multiplicidades socioculturais impactam os processos de legitimação da informação?
Capurro: Os processos de
legitimação informacional e comunicacional passam por uma perspectiva top-down, com agentes políticos
e institucionais atuando em favor dos grandes monopólios digitais, como o Facebook e o Google. Em contrapartida, a sociedade civil tem tomado
consciência da sua responsabilidade e da necessidade de participar mais
ativamente da “in-formação” nas sociedades digitais do século XXI. Esta
perspectiva, chamada de bottom-up, tem lugar em
diferentes fóruns e iniciativas. A Cúpula Mundial da Sociedade da Informação
iniciou uma contribuição
para a formação de um dinamismo entre o poder político, os agentes econômicos e
a sociedade civil, visando formar uma governabilidade das redes baseadas
em regras limpas dos jogos sociais.
Porém, não devemos duvidar que
os interesses políticos e econômicos põem limites e condições para a legitimação,
como se pode perceber claramente no caso da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos e das atividades dos grandes
monopólios digitais, regidos por motivações políticas e/ou de ganância econômica,
com leis nacionais entrando em conflito com os princípios e valores de outras
nações, ou mesmo com tratados internacionais.
"O importante é observar a pluralidade de teorias da informação como algo positivo e característico de nossa época" - Rafael Capurro.
Como conceitos de estudos de vanguarda, a exemplo da física quântica, podem afetar a compreensão e a noção de informação?
Capurro: Partamos do princípio de que há diversas
noções e teorias da informação, entre as quais as relacionadas às Ciências
Naturais. As discussões neste contexto teve início em Viena, há uns quinze anos, sem
esquecermos os debates do início do século XIX. O físico e
filósofo Carl Friedrich von Weizsäcker formulou um conceito de
informação relacionado tanto a fenômenos físicos, como a biológicos e
sociais. Os estudos dele sobre teoria quântica da informação logo foram
desenvolvidas por Holger Lyre.
O importante é observar a
pluralidade de teorias da informação como algo positivo e característico de
nossa época, retomando o conceito de Wittgenstein sobre os jogos da linguagem e
vendo em que forma se condicionam, influenciam, incluem e/o excluem mutuamente.
É um relativismo no sentido original da palavra, ou seja, tomar consciência dos
diversos tipos de relações entre as teorias científicas, tanto das Ciências Humanas,
como das Naturais, sem perder de vista os usos deste conceito na vida cotidiana,
incluindo a sua história em diferentes línguas e culturas. Tudo isso sem cair
no erro de todos os “-ismos”, sem absolutizar a pluralidade, nem tentar reduzi-la a um suposto sentido originário, ou tomado um dos possíveis sentidos como o único válido. Este debate tem sido chamado pelos
colegas vieneses Peter Fleissner e Wolfgang Hofkirchner de "o trilema de
Capurro".
Saber mais:
http://infoscience-fis.unizar.es/, http://www.capurro.de/infoconcept.html e http://www.capurro.de/leon.pdf
Qual é o significado da liberdade sócio-humana no mundo
tecnológico e digital?
Capurro: Por estarmos no
início da era digital, é muito complicado responder esta pergunta, pois tanto a
dimensão política quanto a individual, neste marco histórico, estão em formação
e transformação.
Se entendermos a liberdade em um
jogo de multiplicidade de seres humanos conscientes de sua contingencia e de
sua capacidade de dar diversas respostas a possíveis formas da vida em comum no
mundo compartilhado, então, está claro que o jogo com suas regras está condicionado por passados e futuros individuais e coletivos. Como em
todos os jogos, sempre há movimentos imprevistos ou imprevisíveis que exigem um
espírito aberto e atento para percepções e convívios. Tal dimensão de
imprevisibilidade é própria do existir humano em um mundo comum aberto, espacial e temporal, em forma tridimensional (passado, presente, futuro).
Economicamente, vivemos a incapacidade
para perceber essa dimensão de imprevisibilidade baseada nas características
espaço-temporais do existir humano. Vemos
operações com base em uma visão ideal do homo economicus, assim como a uma fé nos métodos quantitativos
capazes, aparentemente, de predizer o futuro das relações, interesses e desejos
sociais, da liberdade. Aqui, surge o interesse pela acumulação massiva
e global dos dados digitais (Big Data).
Tal desejo de um saber absoluto digital tem raízes teológicas. Já a concepção teológica da providência divina aparecia em contradição com a liberdade contingente humana. Em caso de um poder do saber digital aparentemente absoluto, o conflito se torna real e a liberdade humana aparece em sua fragilidade a todo o nível da vida política, econômica e social. A tarefa de pensar essas trocas é inevitável se quisermos ser responsáveis por nossas vidas.
Qual é o grau de liberdade humana nos processos de produção e circulação da informação, assim como nas (in) formações das pessoas?
Tal desejo de um saber absoluto digital tem raízes teológicas. Já a concepção teológica da providência divina aparecia em contradição com a liberdade contingente humana. Em caso de um poder do saber digital aparentemente absoluto, o conflito se torna real e a liberdade humana aparece em sua fragilidade a todo o nível da vida política, econômica e social. A tarefa de pensar essas trocas é inevitável se quisermos ser responsáveis por nossas vidas.
"A sociedade de massa do início do século XX (...) tem se transformado em uma massa de dados digitais individualizados ou individualizáveis que 'in-formam' ao mundo físico" - Rafael Capurro.
Qual é o grau de liberdade humana nos processos de produção e circulação da informação, assim como nas (in) formações das pessoas?
Capurro: Os sistemas de
vigilância dos mundos digitais e físicos crescem diariamente com aspectos
opressores e também libertadores. Em muitos casos, esses sistemas aspiram a dar
mais segurança individual e social, mas muitas vezes em detrimento das
liberdades individuais. Em situações diversas, é difícil legitimar isto em sociedades democráticas. Assim como a democracia moderna intercambiou com os
meios de comunicação de massa do século XX, as redes digitais globais
alternativas estão intercambiando com os modos de ação e reflexão política e legal.
A rede digital é um meio global
interativo diferente dos meios de massa tradicionais, esta com estrutura hierárquica
de um-a-muitos. Nos últimos anos, tem surgido monopólios e centros de poder que
questionam o caráter originalmente utópico-democrático da Internet, fazendo-a
parecer como uma distopia. Isto se vê claramente em formas insólitas de
vigilância individual e global na confluência do mundo físico e do digital. A sociedade de massa do início do século XX,
tematizada por José Ortega e Gasset na obra "La rebelión de las
masas", tem se transformado em uma
massa de dados digitais individualizados ou individualizáveis que “in-formam”
ao mundo físico.
Estamos em transição de uma
utopia para uma distopia sociodigital, sem vermos claramente quais são os
mecanismos políticos e os exercícios éticos individuais e sociais próprios a
uma "antropotécnica” (sugestão de leitura: Peter Sloterdijk: Has de cambiar
tu vida, 2012), que nos permitiriam tomar uma certa distância dos condicionamentos digitais atuais. Só assim nós poderíamos,
em parte, protegermos do que se apodera de nossos dados, até mesmo com o nosso
consentimento, devido ao desejo de comunicar tudo a todos e a todo o momento. Isto
é uma espécie de imperativo ético da era digital, que subjaz como moral das
redes sociais digitais e forma parte essencial do negócio.
Questionar essa moral
é um perigo, tanto para os poderes políticos quanto para os econômicos na era
digital. A dimensão da privacidade e suas correlações, o
público, não é algo obsoleto pertencente à sociedade burguesa como via Karl
Marx no século XIX e como o vê, por razões opostas, Mark Zuckerberg no século
XXI. É, porém, uma constante da existência humana com diversas possibilidades de se transformar de acordo com os diferentes marcos históricos, sistemas
políticos, econômicos e culturais.
Sem a diferença
entre o público e o privado, a existência
humana se massifica ou atomiza. A liberdade de
manifestar-se ou ocultar-se é algo básico para seres contingentes que jogam suas
vidas com, para e às vezes contra os outros, sem a segurança
de conhecer suficientemente os outros ou o alcance de suas próprias intenções. Aqui está o erro da visão do homo economicus, assim como o de pensar o
ser humano como um ser puramente racional, esquecendo que o
saber sobre si mesmo e sobre os outros é sempre limitado e frágil.
Essa contingência e fragilidade são o fundamento da liberdade humana. As “antropotécnicas”, referidas pelo filósofo Peter Sloterdijk, têm a ver com formas e exercícios de autoproteção, tanto no mundo físico quanto no digital.
Essa contingência e fragilidade são o fundamento da liberdade humana. As “antropotécnicas”, referidas pelo filósofo Peter Sloterdijk, têm a ver com formas e exercícios de autoproteção, tanto no mundo físico quanto no digital.
É necessário tomar consciência
de que as regras e normas éticas e legais são parte de procedimientos inmunitarios, que hão de ser questionados e adaptados permanentemente.
Uma moral ou um sistema legal que se absolutiza e não seja capaz de adaptar-se
a novos condicionamentos tecnológicos e sociais é tão letal quanto um sistema imunitário
biológico que não sabe lidar com trocas e mudanças do meio ambiente.
Saber mais:
http://www.capurro.de/secreto.html; "Digital Whoness. Identity, Privacy and Freedom in the Cyberworld".

Como ocorrem as lutas pelo poder neste mundo virtual
da informação?
Capurro: Estamos
apenas no início das lutas de poder na era digital, sendo semelhantes às lutas
pelo poder sobre terras nas sociedades agrárias ou feudais, assim como às
lutas da sociedade industrial, especialmente dos impérios coloniais baseados no
domínio dos oceanos e do espaço aéreo.
O mundo virtual é assim chamado tomando como referência mundos precedentes. Paradoxalmente, essa virtualidade é, hoje, mais real ainda. Algo semelhante experimentamos, por exemplo, com o cinema, no qual a criação de uma estrela na tela representa maior reconhecimento social e, portanto, é mais real do que a pessoa física.
O mundo virtual é assim chamado tomando como referência mundos precedentes. Paradoxalmente, essa virtualidade é, hoje, mais real ainda. Algo semelhante experimentamos, por exemplo, com o cinema, no qual a criação de uma estrela na tela representa maior reconhecimento social e, portanto, é mais real do que a pessoa física.
A digitalização é um caminho
inevitável para a informação nos dias atuais?
Capurro: Eu entendo que nós podemos
falar sobre digitalização como um evento fundamental na história da humanidade,
comparando-a, inclusive, com a invenção da escrita ou da imprensa. Tais
inventos, que às vezes relacionam-se com descobrimentos, marcam uma época e se
manifestam como “destino inevitável” post
factum, ou seja, nada poderia prevê-los, tendo surgimentos a partir de um conjunto de fatores contingentes.
A informação digitalizada e
globalizada possui um caráter ontológico
diferente da informação impressa, da escritura em manuscritos ou mesmo em
comparação com a transmissão oral. Trata-se de um tema complexo,
já que aborda a dimensão da memória individual e coletiva e a responsabilidade
política de criar instituições que garantam a transmissão da cultura digital,
assim como foram e seguem sendo as bibliotecas, os arquivos e as instituições
de ensino, como escolas e universidades, em relação aos meios impressos e à
transmissão oral. A respeito disso, cabe investigação sobre o conceito de ‘médiologie’, de Régis
Debray.
Como o senhor observa o conflito entre o acesso aberto à
informação científica e tecnológica e a restrição a este tipo de informação?
Capurro: Se por acesso
aberto se entende a possibilidade de publicar, por exemplo, artigos científicos
em revistas acessíveis, não vejo um conflito no
ganho dos mediadores dos sistemas comerciais pelos frutos dos trabalhos por eles realizados.
Porém, claro que se trata de um
sistema já em crise, como se observa na rede digital cuja informação é livre,
aparentemente, no sentido da gratuidade, podendo ser distribuída sem a
necessidade dos mediadores clássicos.
Se pensarmos que
a informação científica e tecnológica produzidas pelas instituições estatais é
custeada pela sociedade, é difícil entender porque tais organizações têm que
comprar por consideráveis valores os seus próprios produtos, que podem estar
acessíveis online.
Em busca da resolução deste
conflito entre o interesse geral da sociedade e o interesse individual - tanto
do autor como dos mediadores das obras -, a época moderna criou certos mecanismos
de proteção, como direitos do autor, as patentes e as marcas registradas. Tais
mecanismos entraram em crise no mundo digital e globalizado, no qual o custo do
sustento material da informação e sua
distribuição é relativa e praticamente nulo. Há diversos modelos elaborados, como o Creative Commons (CC), para tentar
solucionar tensões do poder neste campo. Surgiram, também, novas formas de
produção e distribuição de conhecimentos utilizando as redes sociais, os blogs
etc.
O problema ético que subjaz a
este debate é a ideia de que a humanidade só pode sobreviver se os processos de
conhecimento do mundo, que nos permite criar novas condições de vida e
melhorá-las, não estejam bloqueados por grupos ou monopólios que queiram tomar
proveito à custa do que é comum a todos.
Esta é a “tragédias dos comuns” (Garret Hardin), ou seja, o direito de manter aberto o espírito e o conhecimento humano, bem como os seus produtos, sempre corre o risco de ser utilizado por grupos particulares, em detrimento dos interesses comuns.
A racionalidade individual
entra em conflito com a racionalidade social. Porém, é claro que os problemas
são diferentes, possuem peculiaridades, como no caso da produção
científica e tecnológica em companhias privadas e no caso de escritores e
todos aqueles que vivem de sua produção literária e artística.
Não ter em conta estes
interesses legítimos de diversos grupos sociais que defendem o conhecimento livre é um sinal de ingenuidade filosófica e uma
perda de sentido da complexidade do mundo humano com seus interesses e
conflitos.
"O processo de mútuo reconhecimento é a base para a criação da identidade. No entanto, a identidade humana não é algo substancial e fixo, mas aflora de forma contingente nos jogos sociais em diferentes níveis, contextos e objetivos" - Rafael Capurro.
O senhor já disse que a fascinação por aspectos técnicos
e digitais da sociedade contribuem para perdermos de vista a nossa identidade
em processos de informação que nos revelam e ocultam. O que devemos fazer para manter a atenção sobre quem somos? E há diferença
entre quem somos e quem somos digitalmente?
Capurro: As chamadas Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC´s) abrem novos modos de ser com os outros. Já não somos os mesmos, e neste sentido ontológico, as TIC´s, como todas as tecnologias, não são neutras. Porém, tão pouco elas nos apresentam, inexoravelmente, um futuro utópico ou distópico. É importante refletirmos, perguntarmos “quem sou?” “quem és?” “quem somos?” “quem são?”, em contexto da era digital, a fim de deixar emergir a diferença entre o que e quem, de forma a nos compreendermos não apenas como algo, mas como alguém, que é a diferença ética.
Capurro: As chamadas Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC´s) abrem novos modos de ser com os outros. Já não somos os mesmos, e neste sentido ontológico, as TIC´s, como todas as tecnologias, não são neutras. Porém, tão pouco elas nos apresentam, inexoravelmente, um futuro utópico ou distópico. É importante refletirmos, perguntarmos “quem sou?” “quem és?” “quem somos?” “quem são?”, em contexto da era digital, a fim de deixar emergir a diferença entre o que e quem, de forma a nos compreendermos não apenas como algo, mas como alguém, que é a diferença ética.
Conhecermos e reconhecermos
como “quem” e não apenas como “o quê” é um fundamento de uma universalidade ética pluralista, a que
me referia anteriormente. O processo de mútuo reconhecimento é a base para a
criação da identidade. No entanto, a
identidade humana não é algo substancial e fixo, mas aflora de forma contingente nos jogos sociais em diferentes níveis, contextos e objetivos.
A reputação pessoal desempenha um papel importante nas esferas sociais, políticas e profissionais. O que devemos fazer não é manter a concentração em quem somos real e digitalmente, mas manter a liberdade para nos manifestarmos ou ocultarmos em variados contextos. Tal liberdade está cada vez mais ameaçada, restrita e, às vezes, eliminada. Tudo isso exige um debate ético, legal, político, econômico e cultural.
A reputação pessoal desempenha um papel importante nas esferas sociais, políticas e profissionais. O que devemos fazer não é manter a concentração em quem somos real e digitalmente, mas manter a liberdade para nos manifestarmos ou ocultarmos em variados contextos. Tal liberdade está cada vez mais ameaçada, restrita e, às vezes, eliminada. Tudo isso exige um debate ético, legal, político, econômico e cultural.
A interação social é de caráter
lúdico. Carecemos de um saber absoluto sobre o mundo em sua tridimensionalidade
“des-ocultante” espaço-temporal e sobre nós mesmos, tanto a respeito dos
processos biológicos, quanto da história contingente de nossas vidas. O jogo
social se caracteriza pela liberdade de revelar ou ocultar quem somos em
diversos contextos. Na medida em que materializamos estas opções em forma, por
exemplo, de dados digitais, corremos o risco de que outros manipulem nossas
identidades assim fixadas.
No dia 13 de maio de 2014, o
Tribunal de Justiça da União Europeia outorgou o direito dos usuários exigirem a retirada de informações pessoais nos sites. Este direito não significa a impossibilidade de excluir ou fazer esquecer determinado fato. Trata-se de excluir pegadas, rastros digitais, ou seja, formas em que um quem se revela e coisifica digitalmente como um o quê.
Ler mais:
International Review of Information Ethics (IRIE 2013), Reputation in the Cyberworld - http://www.i-r-i-e.net/issue19.html
Como ocorre a relação entre os paradigmas físico, cognitivo e social da informação? Podemos pensar que ainda estamos em um paradigma social?
Capurro: Os três paradigmas têm a suas legitimidades e os seus sentidos, permitindo diversos tipos de análises quantitativas e qualitativas. Não devemos, porém, fazer uma interpretação histórica linear de um processo que partiria de uma visão materialista ou fisicalista da informação, passando por uma visão cognitiva para chegar, finalmente, à verdadeira visão social.
Há elementos sociais no paradigma físico, já que, por exemplo, os dados bibliográficos armazenados em um computador têm como referência autores e comunidades. O mesmo vale para outros aspectos de cada perspectiva.
Todavia, estamos no paradigma social, no sentido de que, por exemplo, as redes sociais têm grande relevância para o intercâmbio de informação. Por outro lado, vemos como as grandes companhias digitais baseiam as suas estratégias de mercado em crescentes acumulações de dados sobre os usuários e clientes. Estes estão fisicamente armazenados em grandes centros de computação, portanto, são físicos e digitais. O usuário é para essas empresas meios que permitem a elas acumular capital. Se pensarmos estas relações desde a perspectiva marxista, é claro que o que finalmente interessa é o capital e o poder que este capital proporciona aos que reúnem, avaliam e lidam com dados sobre os usuários.
Há elementos sociais no paradigma físico, já que, por exemplo, os dados bibliográficos armazenados em um computador têm como referência autores e comunidades. O mesmo vale para outros aspectos de cada perspectiva.
Todavia, estamos no paradigma social, no sentido de que, por exemplo, as redes sociais têm grande relevância para o intercâmbio de informação. Por outro lado, vemos como as grandes companhias digitais baseiam as suas estratégias de mercado em crescentes acumulações de dados sobre os usuários e clientes. Estes estão fisicamente armazenados em grandes centros de computação, portanto, são físicos e digitais. O usuário é para essas empresas meios que permitem a elas acumular capital. Se pensarmos estas relações desde a perspectiva marxista, é claro que o que finalmente interessa é o capital e o poder que este capital proporciona aos que reúnem, avaliam e lidam com dados sobre os usuários.
Por este olhar, vivemos em uma economia capitalista cuja base é a informação digital, havendo relação entre acumulação de informação e acumulação de capital. Não creio, porém, que estamos suficientemente preparados para análises críticas desta situação histórica, já que o processo de digitalização está em pleno desenvolvimento.
No entanto, podemos, sim, acompanhar este processo com estudos críticos interdisciplinares que mostram formas positivas e negativas do impacto do capitalismo digital em diversas sociedades, assim como no nível global. Uma crítica ao que poderíamos chamar de informacionalismo digital não significa conceber o fenômeno em questão como algo negativo, mas sim ver sua hipertrofia, ou seja, seu "-ismo", como geração de situações e processos sociais e ecológicos insustentáveis.
Qual é a atual realidade histórica da Ciência da Informação?
Capurro: Creio que seguimos concebendo a Ciência da Informação como fazíamos durante a década de 1970, quando o foco das pesquisas era para processos de tratamento e recuperação da informação de dados (bibliográficos) digitais. A information science foi concebida como information retrieval science.
Tanto as Ciências Sociais quanto as ciências dos meios de comunicação se ocupam hoje de muitos aspectos que, para a CI, são entendidos sob perspectivas específicas, correspondendo à relevância da informação na sociedade atual.
Um processo de reformulação do objeto da CI confronta, inevitavelmente, com barreiras das tradições acadêmicas. Por outro lado, entendo que em muitos países, especialmente no Brasil, a consciência da necessidade de intercâmbio e trocas está muito presente, tanto nos estudantes quanto nos professores. Percebemos isto em novas revistas acadêmicas neste campo, assim como em congressos e fóruns.
O que precisamos saber sobre o conceito de informação, na contribuição para o desenvolvimento da Ciência da Informação?
Capurro: O importante é aprender a perceber criticamente o fenômeno da informação em todos os âmbitos da via social. A CI é de caráter interdisciplinar, ou seja, sua perspectiva formal, os fenômenos da informação, tem que buscar sua correlação concreta em determinados âmbitos da realidade. Isto implica em uma pluralidade de metodologias e também em estar atento para a possível relevância de pesquisas em outros campos, que possam parecer estrangeiros, mas com potencial de contribuição.
Qual é a sua questão-chave de pesquisa hoje em dia na Ciência da Informação?
No entanto, podemos, sim, acompanhar este processo com estudos críticos interdisciplinares que mostram formas positivas e negativas do impacto do capitalismo digital em diversas sociedades, assim como no nível global. Uma crítica ao que poderíamos chamar de informacionalismo digital não significa conceber o fenômeno em questão como algo negativo, mas sim ver sua hipertrofia, ou seja, seu "-ismo", como geração de situações e processos sociais e ecológicos insustentáveis.
"Em muitos países, especialmente no Brasil, a consciência da necessidade de intercâmbio e trocas está muito presente, tanto nos estudantes quanto nos professores", Rafael Capurro.
Qual é a atual realidade histórica da Ciência da Informação?
Capurro: Creio que seguimos concebendo a Ciência da Informação como fazíamos durante a década de 1970, quando o foco das pesquisas era para processos de tratamento e recuperação da informação de dados (bibliográficos) digitais. A information science foi concebida como information retrieval science.
Tanto as Ciências Sociais quanto as ciências dos meios de comunicação se ocupam hoje de muitos aspectos que, para a CI, são entendidos sob perspectivas específicas, correspondendo à relevância da informação na sociedade atual.
Um processo de reformulação do objeto da CI confronta, inevitavelmente, com barreiras das tradições acadêmicas. Por outro lado, entendo que em muitos países, especialmente no Brasil, a consciência da necessidade de intercâmbio e trocas está muito presente, tanto nos estudantes quanto nos professores. Percebemos isto em novas revistas acadêmicas neste campo, assim como em congressos e fóruns.
O que precisamos saber sobre o conceito de informação, na contribuição para o desenvolvimento da Ciência da Informação?
Capurro: O importante é aprender a perceber criticamente o fenômeno da informação em todos os âmbitos da via social. A CI é de caráter interdisciplinar, ou seja, sua perspectiva formal, os fenômenos da informação, tem que buscar sua correlação concreta em determinados âmbitos da realidade. Isto implica em uma pluralidade de metodologias e também em estar atento para a possível relevância de pesquisas em outros campos, que possam parecer estrangeiros, mas com potencial de contribuição.
Qual é a sua questão-chave de pesquisa hoje em dia na Ciência da Informação?
Capurro: Com pesquisa focada na questão da ética da informação, a minha pergunta-chave é, basicamente, "o que é o ser humano na era digital?".
Por que o senhor declarou que o conceito de informação deve estar relacionado com outros conceitos, como o de documentação e o de meios de comunicação?
Capurro: Nenhum conceito existe isoladamente, desconectado de redes de relações semânticas e pragmáticas, ou seja, em jogos de linguagem. É importante, portanto, estar atento para tais jogos, de forma a perceber os fenômenos em questão.
No caso da informação, há históricos e evidentes envolvimentos deste conceito com a documentação e os meios de comunicação. Tais relações vão mais além, ainda, dos fenômenos que surgem na era digital. É relevante haver análise "genealógica" no sentido que dão Nietzsche e Foucault a este termo, para perceber as transformações que são não apenas conceituais, mas sim existenciais.
Saber mais:
http://www.capurro.de/cottinf.htm.
Muitos estudos se referem ao tema da informação, mas sem utilizar este termo. Isso pode ser prejudicial para a pesquisa e o pensamento no campo da investigação informacional?
Capurro: Pelo contrário. Não creio que o uso de um termo seja necessariamente prejudicial, neste sentido. Às vezes, o não uso voluntário de um termo pode ser estratégico para evitar um determinado jogo semântico que obscurece justamente algo que se quer ressaltar.
Particularmente, percebi esta necessidade quando busquei um termo correspondente ao de informação, na antiguidade greco-latina e me deparei com o fenômeno da mensagem e com o termo grego "angelia". Essa observação está na minha tese de doutorado, publicada em 1978.
Porém, apenas muitos anos depois eu pude esboçar o que chamo de "angéletica" ou "teoria das mensagens/mensageiros", que me levou a uma tarefa interdisciplinar e à publicação de "Messages and Mesengers. Angeletics as an Approach to the Phenomenology of Communication". Entendo ser apropriado afirmar que vivemos em sociedades de mensagens e que este termo não é idêntico ao de sociedade da informação e comunicação, ainda que se reportem entre si.
"Há, portanto, uma diferença entre mensagem e informação e a Ciência da Informação deveria ser consciente desta diferença e integrá-la em seu objeto de estudo", Rafael Capurro.
A informação tem, necessariamente, um compromisso com o
conhecimento, e vice-versa? E ela tem, essencialmente, uma função social?
Capurro: A informação vista
como um fenômeno humano está intimamente relacionada com processos de
conhecimento e tem função social. Niklas Luhmann expressa isso de forma
muito concisa e clara quando disse que o fenômeno da comunicação, que para ele
não se reduz a processos psíquico-humanos, consta de três dimensões: uma oferta de sentido (mitteilung); uma seleção de sentido (information); e uma integração desta seleção com o sistema em que é realizada (verstehen).
O interessante neste esquema
conceitual é que os termos “mitteilung” e “information” em alemão corrente são sinônimos.
Luhmann opera com uma diferença conceitual que é ao mesmo tempo uma diferença
terminológica. É um caso interessante para estudar como a linguagem diária pode levar
a novas concepções e teorias que mostram fenômenos que, como neste caso, por utilizar termos considerados sinônimos, não
são percebidos em sua especificidade.
É justamente o conceito de mitteilung no sentido da mensagem, o
termo e conceito que eu buscava quando me perguntava qual era o equivalente do
termo atual informação na tradição
grega (angelía) e latina (notitia).
Há, portanto, uma diferença entre mensagem e informação e a
Ciência da Informação deveria ser consciente desta diferença e integrá-la em
seu objeto de estudo.
O senhor concorda que a Ciência da Informação chega a
tratar bastante sobre as relações existentes no modelo de produção capitalista,
mas explora pouco os conflitos religiosos e as informações teológicas, embora
tais estejam na essência do desenvolvimento socio-humano do capitalismo?
Capurro: Há uma
relação fenomenológica muito íntima entre informação, capital e religião. O
fato de o fenômeno religioso não ter sido tematizado o suficiente pela CI
mostra, mais uma vez, a necessidade de trocas paradigmáticas. Tanto as
religiões quanto o seu substituto moderno, o capital, têm ambições universais
de salvação que se baseiam no que poderíamos chamar de mensagem forte, ou seja, algo que implica uma entrega existencial
individual e coletiva calcada em textos sagrados, ritos, promessas etc.
As deusas do capital, que antes eram deusas teológico-morais, são atualmente deusas de informação e têm, muitas vezes, caráter quase sagrado a que fazem alusão, por exemplo, os políticos quando querem fundamentá-las nos direitos humanos ou na constituição.
As deusas do capital, que antes eram deusas teológico-morais, são atualmente deusas de informação e têm, muitas vezes, caráter quase sagrado a que fazem alusão, por exemplo, os políticos quando querem fundamentá-las nos direitos humanos ou na constituição.
Porém, estas relações entre
Deus, informação e capital são, evidentemente, mais antigas do que as suas formas
modernas e as suas expressões atuais na era digital. Neste sentido, a CI teria que
buscar suas raízes, por exemplo, na crítica platônica, ou na cultura egípcia e
babilônica, para citar algumas fontes da civilização ocidental que estão
relacionadas a culturas do chamado “extremo oriente”.
Por isso, creio que o diálogo
intercultural sobre regras, costumes e valores, que subjazem a diversas práticas
comunicacionais através dos séculos, é algo fundamental para compreender nossas
sociedades de mensagens. Chamo este campo de
investigação de ética intercultural da
informação.
Podemos
considerar que a Ciência da Informação em seu aspecto acadêmico atua, em
primeiro lugar, no nível filosófico?
Capurro: Eu diria que o que
está ausente na CI é justamente o pensamento filosófico, que é interpretado
como algo marginal ou supérfluo, frente aos métodos oriundos da informática ou
da matemática. Digo isso sem nenhum menosprezo por tais disciplinas que têm
suas raízes também na filosofia ocidental e que estão na base da presente
sociedade tecnológica. Porém, justamente por estar na
base é preciso pensá-las, ou seja, questioná-las filosoficamente, o que
significa também uma tarefa ética.
O senhor gostaria de fazer algum comentário final?
Capurro: Apenas de agradecer ao professor Oscar Krütli, da província de Córdoba, Argentina, pela participação nesta entrevista, complementando informações e expondo pensamentos.
Veículos que publicaram a entrevista (em construção):
Ancib - Facebook
Blog Comunicação e Pesquisa
Boletim Faperj
Dicyt
Jornal da Ciência
Observatório da Imprensa
Pensar a Educação em Pauta
Site do Rafael Capurro
O senhor gostaria de fazer algum comentário final?
Capurro: Apenas de agradecer ao professor Oscar Krütli, da província de Córdoba, Argentina, pela participação nesta entrevista, complementando informações e expondo pensamentos.
Veículos que publicaram a entrevista (em construção):
Ancib - Facebook
Blog Comunicação e Pesquisa
Boletim Faperj
Dicyt
Jornal da Ciência
Observatório da Imprensa
Pensar a Educação em Pauta
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Parabéns, muito elucidativa a entrevista. Gilson Medeiros.
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