Entrevista: projeto da USP estimula meninas a estudar Astronomia


Uma das organizadoras do Astrominas, Daniele Honorato
 é, também, monitora do projeto de divulgação científica "Visita Monitorada" no IAG.


Quem acompanha os debates sobre a comunidade científica está familiarizado com uma das bandeiras mais frequentes nos últimos anos no meio acadêmico: a inserção, as oportunidades e o desenvolvimento das mulheres na ciência. Algumas pequisas apontam que no campo das ciências exatas, especificamente, a hegemonia masculina é mais sólida, e as cientistas têm mais dificuldade para se afirmar como referências nas suas áreas. 

Por isso, muitos eventos, pesquisas e projetos foram criados, tentando alertar e amenizar essa disparidade. Um exemplo desse trabalho é o projeto Astrominas, desenvolvido por professoras e estudantes do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP), em parceria com outros institutos da área.

Voltado para meninas do 9° ano do ensino fundamental ao 2° ano do ensino médio, o Astrominas chegou à segunda edição em 2020. Dez mil estudantes se inscreveram, das quais 600 foram sorteadas para participar das atividades realizadas virtualmente entre os dias 01 de junho e 03 de julho. A programação contou com aulas, experimentos, apostilas, palestras exibidas pelo Youtube e interações pelo Whatsapp.

Para entender melhor esse projeto e a importância de tornar a Astronomia e a ciência como um todo um campo mais oportuno de trabalho para as mulheres, o blog Dissertação Sobre Divulgação Científica entrevistou a estudante Daniele Honorato, uma das organizadoras do Astrominas. "Na minha opinião, o principal fator que pode inibir as meninas na decisão de estudar Astronomia é a cultura escolar. Quando se inicia os estudos, o ambiente machista e a sala preenchida por muito mais homens do que mulheres podem gerar uma sensação de não pertencimento."

Confira a entrevista!


Por que vocês sentiram a necessidade de criar um projeto de divulgação científica em Astronomia para meninas?
Percebemos que não há tantos projetos de divulgação científica voltados para a faixa etária em que trabalhamos. Escolhemos a Astronomia como carro-chefe porque ela tem um poder interdisciplinar enorme. Pode abrir espaço e despertar o interesse das meninas para diversas áreas do conhecimento científico. Além disso, é a nossa paixão, claro! 

O projeto é voltado para meninas porque a cultura escolar apresenta uma ciência majoritariamente masculina. É imprescindível encorajar as alunas a seguir ou considerar carreiras científicas, fazendo com que elas se sintam representadas no meio acadêmico. É o nosso objetivo. 

Em 2020, o projeto foi realizado virtualmente, por conta da pandemia. Como foi a organização e que tipo de atividades foram projetadas? 
O nosso projeto foi adaptado em poucos meses para um formato inteiramente virtual. Fizemos o nosso melhor com o tempo que tínhamos. Não podíamos perder a oportunidade de realizar um projeto tão incrível como esse.

As cinco semanas do curso foram preenchidas com aulas e palestras gravadas, apostila com experimentos, mesas redondas realizadas ao vivo pelo YouTube, e depois disponibilizadas em nosso site juntamente com todo o material. Mulheres cientistas de diferentes áreas, como Astronomia, Geociências, Geofísica, Ciências Atmosféricas, Física e Matemática, colaboraram voluntariamente para a criação de todo o material. 

As 600 meninas foram divididas em 120 grupos, com o acompanhamento via Whatsapp. Essa assistência foi prestada pelas chamadas “Fadas Madrinhas”, que são voluntárias envolvidas com a ciência, e que têm diferentes graus de instrução, idade e são de variadas instituições, também.

Como foi o processo de inscrições e o sorteio? O perfil do público participante mudou muito em relação ao ano passado? 
Esse foi o primeiro ano do Astrominas como curso. Mais de 10 mil meninas se inscreveram a partir do preenchimento de um formulário. Foram realizadas três chamadas para o preenchimento das 600 vagas, via sorteios que foram transmitidos ao vivo pelo canal do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas/USP no Youtube.

Nesse processo, foram garantidas 40% das vagas a estudantes de escolas públicas, 40% a estudantes de escolas particulares e 20% a cotistas PPI (pretos, pardos ou indígenas).

Qual avaliação você faz dessa versão do Astrominas? Como foi a repercussão e os resultados?
As astrominas se mostraram extremamente orgulhosas de si mesmas,  porque durante o curso muitos desafios precisaram ser vencidos. Mais do que isso, sentiram-se inspiradas a seguirem adiante e correrem atrás dos seus sonhos, mostrando também gratidão imensa por todas as mulheres envolvidas no projeto. As “Fadas Madrinhas”  se sentiram igualmente orgulhosas e gratas pela oportunidade de fazerem parte do projeto e por impactarem tantas meninas. O Astrominas 2020 deixou um gostinho de “quero mais” em todo mundo!

Como o Astrominas pode ajudar as meninas a pensar e desenvolver habilidades para seguir a carreira científica, em especial a Astronomia?
No Astrominas, as meninas percebem a si mesmas capazes de fazer ciência, conhecem várias áreas de estudos e pesquisas, além de terem contato com mulheres reais que podem ser inspiração e exemplo de jornada a se seguir. 

A vida de uma cientista se torna mais factível e elas podem considerar a possibilidade de ser cientista também. A Astronomia foi um dos principais temas abordados pelo Astrominas. Portanto, as meninas se aprofundaram em diversos assuntos relacionados à área, conheceram vários campos de pesquisa, e com certeza aprenderam muita coisa nova, o que pode fazer com que o interesse em Astronomia seja aflorado ou se intensifique ainda mais.

Por que o público-alvo são meninas do 9° ano do ensino fundamental ao 2° ano do ensino médio? Pensam em abrir para outras faixas etárias?
Esse é o nosso público-alvo porque não há tantos projetos de divulgação científica voltados para essa faixa etária. Essas alunas também estão entrando em um momento de decisão sobre em qual curso ingressar. Como elas terão mais algum tempo na comunidade escolar, o Astrominas pode impactá-las de alguma forma com as experiências vivenciadas no projeto.

O que se espera que as meninas participantes do projeto aprendam e possam levar para a vida?
Esperamos que elas se sintam capazes de fazer ciência e superar desafios, aprendam que mais importante do que ter respostas é saber como encontrá-las. Também esperamos que elas se sintam representadas, inspiradas e sirvam de inspiração para alguém.


Equipe organizadora do Astrominas.

Quais são as vantagens e as desvantagens de realizar o projeto virtualmente? 
Nós Conseguimos atender a um número maior de meninas, abrangendo todos os estados do Brasil. Perdemos um pouco em relação à proximidade com as meninas, mas o problema foi minimizado com as interações em grupos do Whatsapp e posts em outras redes sociais. Isso permitiu o desenvolvimento de uma maior intimidade e troca de afeto entre todas.

O slogan do Astrominas é "empoderando meninas através da ciência". Que mensagem vocês pretendem passar? 
O papel da mulher na ciência foi invisibilizado ao longo da história. Ainda hoje as áreas das ciências e das ciências exatas, especificamente, não estão relacionadas ao feminino no imaginário coletivo. Assim, mesmo que indiretamente, as meninas são desencorajadas a seguirem tais áreas durante toda suas vidas acadêmicas. 

Eu já ouvi diversos relatos na graduação em exatas em que o próprio professor chegou a dizer que tal curso “não é coisa para menina”. Logo, o slogan reflete o nosso desejo de curar as inseguranças intelectuais geradas ao longo da vida escolar e fazer com que elas se sintam mais do que capazes de fazer ciência.

O que pode inibir e atrair as meninas para estudar Astronomia? 
A Astronomia é basicamente composta por Matemática e Física. Essas matérias podem assustar muita gente, mas quando se é mulher, a sociedade faz você pensar duas vezes antes de seguir alguma área de exatas. Sempre fica a dúvida: “Será que sou boa nisso? Será que  eu gosto disso mesmo?”. 

Na minha opinião, o principal fator que pode inibir as meninas na decisão de estudar Astronomia é a cultura escolar. Quando se inicia os estudos, o ambiente machista e a sala preenchida por muito mais homens do que mulheres podem gerar uma sensação de não pertencimento. Porém, as lutas feministas e estudantis têm ganhado força ao longo dos anos, o que nos faz ter esperanças em um futuro melhor. 

Dá para escrever um livro sobre o que pode atrair as meninas para a Astronomia, mas irei citar o futuro da Astronomia. O avanço tecnológico e o espaço conquistado na Astronomia por mulheres incríveis fazem dessa época um excelente momento para se fazer parte das descobertas fantásticas e grupos de pesquisas com meninas que dividem o mesmo interesse que a gente. Além disso, a Astronomia, como toda ciência, ensina que esforço e dedicação valem muito mais que genialidade.

Qual é a quantidade e a proporção de meninas estudantes no curso de Astronomia do IAG da USP? E em relação aos docentes?
O Departamento de Astronomia da USP, especificamente, conta com 33 docentes, dos quais 11 são mulheres. 

Na pós-graduação stricto sensu do Programa, são 58 alunos, sendo 34 homens e 24 mulheres.     

Já o Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Astronomia tem 25 estudantes ativos, sendo 11 homens e 14 mulheres.

Por fim, no bacharelado em Astronomia há 94 estudantes matriculados: 56 são do sexo masculino, enquanto que 38 são do sexo feminino.

Como o Astrominas pode contribuir para o próprio IAG/USP? Já é possível medir algum impacto?
Esperamos um aumento no número de meninas nas turmas de todos os cursos, daqui a alguns anos. Mais do que isso, aprendemos muito com toda essa experiência e é sempre um prazer enorme poder servir à nossa comunidade.

O tema da divulgação científica tem relevância nos debates e nas atividades de pesquisa e de docência do Instituto?
Há vários projetos de divulgação científica no IAG, como o Atendimento ao Público, Astronomia Para Todos, Cecília e o IAG Na Sua Casa. Além disso, muitas pesquisas, inclusive dissertações de mestrado e Programas de Bolsas, estão relacionadas com esse tema.

Por que você escolheu estudar Astronomia? 
O primeiro livro que pedi para a minha mãe comprar foi “O Guia dos Curiosos”, cujo primeiro capítulo fala sobre Astronomia. Desde que eu aprendi a ler, fiquei interessada pela ciência. Ao longo do ensino fundamental, as estrelas e os planetas foram roubando a cena (risos). Quando eu estava no oitavo ano, comecei a estudar Astronomia com um pouco mais de compromisso. Decidi, então, que eu cursaria essa faculdade. 

Não posso esquecer de citar que a série “Cosmos” e vários documentários que me influenciaram também. Essa sensação de que há muito o que descobrir e, também, o fato de podermos estudar o nosso passado “lendo” a luz que chega até nós contribuíram para eu me apaixonar pela Astronomia. 

Em quais situações você experienciou a hegemonia masculina na área?
As salas de aula em geral possuem mais homens do que mulheres, especialmente no Instituto de Física/USP e no Instituto Militar de Engenharia, onde algumas disciplinas do IAG são ministradas. Os meus professores até agora foram e são em sua maioria homens. Percebe-se, também, um ar de superioridade por parte dos meninos em alguns momentos, como em atividades de laboratório. 

Esse conjunto de fatores pode trazer um sentimento de impotência e até nos desmotivar a seguir o curso. Mas, são nesses momentos que temos que nos lembrar os motivos que nos trouxeram até aqui, buscar inspiração e força em mulheres que estão ao nosso lado.

Na sua opinião, esse cenário é mais sentido no Brasil ou é um reflexo do que acontece também internacionalmente?
Acredito que no Brasil, assim como em todos os países onde o investimento em pesquisa e ciência é baixo, o cenário é um pouco pior, uma vez que o investimento em educação reflete diretamente em questões como essa.

Você gostaria de ter falado sobre algum tópico não abordado durante a entrevista?
Sim. Eu gostaria de enaltecer toda a dedicação e o trabalho da professora Elysandra Cypriano (professora do IAG/USP e uma das coordenadoras do projeto) para com o Astrominas. Sem ela, nada disso teria acontecido. A sua história de carreira e o seu amor pela Astronomia inspiram não só a mim, como a todos que têm a honra de conhece-la.

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