Artigo: Respeita a fila! Na moral
“Câmara aprova projeto que torna crime furar a
fila de vacinação”. Essa é uma manchete
recente de jornais de um país chamado Brasil (mas, não é exclusividade nossa).
A necessidade de uma lei que tente (tente) obrigar o respeito ao cumprimento de
regras de vacinação em plena pandemia acusa fraturas na ideia de sociedade,
civilização e no conceito de moral.
O que é agir na moral, segundo Platão?
Seria a pessoa adotar determinado comportamento considerado correto, de forma
livre, sem coação, sem constrangimento, sem o fazer por força de lei ou porque
há uma câmera flagrando tudo. Simplesmente porque é certo. Portanto, agir na moral não é agir certo, é agir certo
porque quer, renunciando às próprias pretensões a qualquer custo.
Portanto, a vigilância (conceito
foucaultiano) não produz comportamentos morais. É preciso ausência de instrumentos
de controle para dar condições ao florescimento de ações consideradas morais. Em
A República, Platão conta uma história do pastor Giges, cujo comportamento era
considerado exemplar, até ele encontrar um anel mágico que deu a ele o poder da
invisibilidade. Longe dos olhares alheios, Giges deu asas aos subterrâneos dos
seus pensamentos.
Pessoas que se aproveitam de
alguma posição sócial para furar a fila da vacina, provavelmente, pensaram estar
desfrutando do anel de Giges, agindo na invisibilidade. É uma prática que revela
atitudes altamente egoístas, egocêntricas e totalmente descompromissadas com a
ideia de coletividade. Além de um desrespeito ao próximo, individualmente, é um
ataque ao Estado, instância organizadora da nossa vida, e à civilização que
estamos (espero!) tentando construir e consolidar.
Cachorros não deliberam, agem de
forma instintiva a satisfazer imediatamente a sua vontade, custe o que custar.
Lembro de uma ocasião da minha infância em que dei comida para os meus dois
cachorros. Primeiro, dei uma porção para o Toche, para ele ficar distraído e se
deliciando. Logo em seguida, dei uma porção para a Orelhuda (apesar do nome,
tinha a orelha pequena) a uma distância considerável do Toche. Este engoliu
rapidamente a comida e correu tão veloz em direção ao alimento da Luluda
(apelido dela), que daria inveja no Usain Bolt. Papou a comida da Lú (outro
apelido) sem a menor cerimônia. Ali, o Toche não foi mau. Agiu conforme leis
internas a sua própria natureza. Ele não poderia responder juridicamente por
seus atos.
Nós, sim, podemos. Não somos
cachorros. A moral limita a nossa liberdade. Não posso fazer tudo o que quero.
Kant diz que uma boa maneira de analisarmos o valor da nossa conduta, se agimos
adequadamente, seria universalizar aquele comportamento. Ou seja, se todos
agissem dessa forma, seria bom para a sociedade ou seria destrutivo? Se todos
se achassem no “direito” de furar fila, seria cada um por si e Deus por
ninguém. Teria “vantagem” quem mais dinheiro, contatos políticos e poder de
influência tivesse.
O nome disso é lei da selva. Numa
sociedade com tendências à brutalidade e com baixo grau de empatia entre pessoas,
não é de se estranhar fura-fila da vacina e manobras de corrupção tendo como
“oportunidade” a pandemia, ou seja, vidas perdidas. Dá para reverter isso,
desde que a sociedade seja fundamentada na empatia, na humanidade e na conexão
afetiva e fraterna com o outro.
Soa até estranho ter que
convencer humanos de que projetos políticos devem ter como prioridade o
respeito, a felicidade e o bem-estar das pessoas. Mas, o óbvio deve ser dito,
repetido e certificado de que a mensagem foi entendida. A ética (que é social),
os valores sobre o que é ou não aceitável, está constantemente em jogo, seja
nos veículos de comunicação, nas lideranças comunitárias, políticas e
institucionais, em todo o lugar. Por isso, a luta pelo humanismo deve ser
constante e incansável. Fiquemos atentos para que não sejamos hospedeiros de ideias
contrárias aos nossos verdadeiros e genuínos interesses!
Comentários
Postar um comentário