Artigo: Sim, eu parei o tempo

Artigo publicado no Jornal O Estado - Mato Grosso do Sul, em 21/12/2020.

Todos já estamos vacinados quanto ao lado danoso das redes sociais e da internet em geral. Se antes a gente se encantava com as promessas de emancipação, de democracia, acesso ao conhecimento e do potencial de relacionamentos, hoje somos desconfiados. As fake news, as bolhas, a ansiedade e a manipulação através de algoritmos são as faces mais notáveis dessa nova interpretação.

O documentário O Dilema das Redes traz um retrato interessante de toda a ciência aplicada num mercado que compete pelo nosso tempo e a nossa atenção, através de estratégias de reforços intermitentes positivos: notificações, marcação de outros perfis em fotos, o ato de passar constantemente o feed para ter novidades etc.

Esse cenário ajuda a compor o que Guy Debord chama de sociedade do espetáculo, na medida em que essas plataformas trabalham com imagens e representações artificiais do que seria a vida. É como se renunciássemos ao desfrute da nossa insubstituível vivência. Dizia Debord: “Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”. De protagonistas, seríamos espectadores da própria história.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han critica a euforia da comunicação nas redes, que seria uma comunicação degenerada, sem a presença do interlocutor, em que as relações de fato cedem espaço para meras conexões. A comunicação digital seria falha, inclusive, porque não contempla todos os sentidos. Para se afastar dessa lógica, o pensador passou a cultivar um jardim secreto, “que me deu contato com a realidade: cores, aromas, sensações” (...) “a terra tinha peso, fazia tudo com as mãos”.

Tem havido movimentos na direção de desfrutar mais o off-line. E por incrível que possa parecer, a tal da geração Z tem tido protagonismo. Pesquisa da agência Dentsu Aegis Network identificou que jovens entre 18 e 24 anos estão usando bem menos as redes sociais. Muitos expressam o mal-estar por terem as próprias emoções e os sentimentos manipulados pelas grandes corporações.

Eu não sou da geração Z (sou da Y), mas, assim como Byung-Chul Han, tenho as minhas técnicas de reencontro. Dia desses eu voltei a frequentar o parque perto de casa. Dia nublado, úmido, ameaça de chuva, vento discreto massageando suavemente o rosto. Muito agradável! Parecia os tempos da minha infância na deleitosa Petrópolis. Fiquei sozinho embaixo de uma árvore de média altura, tronco de circunferência pequena, folhas médias e tons verdejantes. Parecia ser de algum fruto, mas não soube identificar qual era. Tirei a máscara (ninguém por perto), sentei sobre uma canga, deixei o celular ligado ao lado, mas desliguei a internet. 

Que paz! Quase flutuando, observava as pessoas passarem a pé, de patins, bicicleta, conversando sentadas em bancos ou mesmo no gramado. Liguei um pouco a música Morning Mood, mas segundos depois eu desliguei. O momento exigia um desnude do digital. Nada mais rico naquele instante do que apreciar a orquestra da natureza, os cantos dos pássaros, o mexer das folhas das árvores, o próprio vento, barulhos difusos de crianças ao fundo. Algo extraordinário, embora ordinário.

Ali, “parei o tempo”. Impus-me contra Chronos, que nada pôde fazer. Não havia eleição nos Estados Unidos que despertasse ansiedade, não havia novo vírus na Bolívia e nem Domènec Torrent capazes de me tirasse o sono. Ali, eu adquiri imunidade, ainda que temporária, contra o vírus da vida automática, contra o lixo informacional (não que informação seja lixo, pelo amor de Paul Otlet). Ali eu redescobri que é possível “parar o tempo”, controlar o que nos faz perder no universo de informação, luzes e likes.

E por que “parar o tempo”? Para nos centramos, organizarmos, selecionarmos e processarmos melhor as informações e, portanto, lidarmos com o dia a dia de forma presente e consciente. Como nos diz Richard Wurman, a transformação da informação em compreensão cessa a ansiedade. 

Há cerca 2 mil anos, o poeta latino Ovídio escreveu sobre o tempo devorador das coisas. Inspirado nessa ideia, Shakespeare escreveu no século XVII uma comédia em que fala sobre “os dentes do tempo”, que tudo devora. Pobrezinhos! Nunca foram a um parque!

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