Entrevista: projeto de divulgação científica aborda a negritude na ciência
Além de divulgar a produção científica (pesquisas e artigos), a divulgação científica tem outra importante função: lançar luz sobre problemas, desafios, desigualdades e injustiças sociais das mais diversas refletidas no ambiente acadêmico. Por isso, o campo tem, também, um papel político no sentido de ajudar a mudar determinados cenários que comprometem a equidade social e a oferta de oportunidades na Ciência, Tecnologia e Inovações (C,T&I). Ajudar como? Promovendo debates sobre os mais variados temas e dando voz aos mais diversos personagens (maiorias e minorias) que compõem (ou não) o universo acadêmico.
O físico Alan Alves Brito coordena o projeto
de divulgação científica Akotirene Kilombo Ciência
Um importante tema que tem motivado pesquisadores e outro profissionais da academia é o estudo da presença (ou ausência) de estudantes, pesquisadores e professores negros nas universidades e outros centros de pesquisa e educação. Por isso, o blog Dissertação Sobre Divulgação Científica conversou com o físico Alan Alves Brito, que é diretor do Observatório Astronômico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele é criador do projeto de divulgação científica Akotirene Kilombo Ciência, que atua na comunidade Kilombola Morada da Paz, em Triunfo (RS).
Para Alan, esse debate é importante porque alerta a sociedade para a enorme dificuldade de cidadãs e cidadãos negros em acessar a universidade, inclusive como professores e pesquisadores. Segundo ele, em média, 90% dos professores das universidades e centros de pesquisa no Brasil são brancos.
"Por conta do racismo estrutural e estruturante, a educação e o acesso à cultura científica têm sido negados às pessoas negras ao longo da história" (...) "Além do genocídio físico das pessoas negras, tão amplamente divulgado e ancorado na literatura científica e jornalística, há, também, o genocídio epistêmico", declara.
Nascido em Vitória da Conquista (BA), Alan é, com o perdão do clichê, um ponto fora da curva na estrutura social brasileira. Ele decidiu que seria cientista ainda pequeno, encantado com o fenômeno da passagem do cometa Halley, em 1986. Desde muito cedo, Alan se interessa pela ciência e por temas de justiça social. Ainda pré-adolescente, ele criou um grupo dedicado a ciências no bairro onde morava. Dos 12 aos 21 nos, ele integrou o Programa de Saúde do Adolescente (PROSAD), realizado em Feira de Santana (BA), lidando com assuntos da educação e saúde pública.
Hoje, Alves Brito é pesquisador do Instituto de Física da UFRGS, tem doutorado em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), é membro da Sociedade Astronômica Brasileira e já fez estágios de pesquisa no Chile, nos Estados Unidos e na Austrália, entre outros destaques no currículo acadêmico. Ele ressalta que só conseguiu realizar tantos sonhos e chegar tão longe:
"porque tive, desde os primeiros momentos de minha vida, acesso às políticas públicas materializadas pela existência de programas como o PROSAD, escolas e universidades. As dificuldades foram muitas, mas não tenho dúvidas, sobretudo, quando olho para a realidade do Chile e da Austrália: a educação pública, gratuita e de qualidade é crucial para alcançarmos a democracia plena no Brasil e combatermos o racismo estrutural".
Confira a entrevista:
O que é e como surgiu o Akotirene Kilombo Ciência?
É um projeto intercultural de educação e divulgação de ciências. O nosso objetivo é trabalhar questões étnico-raciais, de gênero e as suas intersecções, levando em conta diferentes cosmologias. O projeto surgiu da relação de afeto entre mim e a comunidade Kilombola Morada da Paz (COMPAZ), que fica em Triunfo, no Rio Grande do Sul.
Nós buscamos promover um diálogo entre saberes em uma perspectiva antirracista e antissexista no âmbito da educação para as relações étnico-raciais e de gênero. O surgimento foi no contexto do Edital Elas nas Exatas, que segue ativo no âmbito do Programa “Ciência na Escola, Ciência na Sociedade”, da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS.
Qual é a razão de haver tão poucos pesquisadores negros na ciência brasileira?
É uma questão bem complexa, são muitas razões. Mas, certamente, a principal tem delas tem origem no que significou o processo de colonialismo clássico e moderno e o desenvolvimento do capitalismo, tendo a escravidão dos corpos negros como a sua moeda mais valiosa. No bojo desses sistemas, está o desenvolvimento do conceito moderno e contemporâneo de “ciência”. Trocando em miúdos: por conta do racismo estrutural e estruturante, a educação e o acesso à cultura científica têm sido negados às pessoas negras ao longo da história.
Além disso, o racismo científico, uma pseudociência, fortemente amparada pelas ideias eugenistas de séculos passados, retirou os corpos negros do lugar de protagonismo do pensamento e desenvolvimento científico e tecnológico. A ciência não tem sido um valor material e simbólico para as pessoas negras. 90%, em média, dos professores das universidades e centros de pesquisas do Brasil são brancos (as). Pessoas negras não estão representadas em livros, epistemologias e metodologias científicas. Além do genocídio físico das pessoas negras, tão amplamente divulgado e ancorado na literatura científica e jornalística, há, também, o genocídio epistêmico. Esse último é pouco discutido. As ciências têm sido historicamente uma ação afirmativa para pessoas brancas, homens em sua maioria, cis, heterossexuais e bem nascidas a certas latitudes. Essas “ações afirmativas”, num “pacto narcísico da branquitude” (expressão cunhada pela pesquisadora negra Ci da Bento), explica em grande parte a ausência ou subrepresentação das pessoas negras nas ciências.
Temos vários dados na literatura. Acabou de sair um artigo nosso no âmbito do Grupo de Trabalho para Questões de Gênero da Sociedade Brasileira de Física (confira aqui o artigo). Há, também, várias falas minhas no Youtube em que explico e exploro esses resultados (acesse aqui). Também será publicado, em poucos dias, na Revista Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras, um ensaio crítico de minha autoria em que exploro números, estatísticas e a realidade dos corpos negros na Física e na Astronomia brasileira.
Aos longo desses dois anos, quais resultados e atividades realizadas pelo projeto você destaca?
Num primeiro momento, numa relação direta entre a UFRGS, a Escola Municipal de Ensino Médio Gonçalves Dias e o Kilombo Morada da Paz, a iniciativa promoveu oficinas e palestras nos campos da Astronomia, Biologia e Química. Também foram feitos experimentos com plantas medicinais e observação do céu noturno, além de rodas de conversa sobre mulheres nas ciências, envolvendo meninas e meninos da escola.
Nós trabalhamos intensamente durante um ano em várias oficinas temáticas. Após o término do projeto no contexto do edital (ganhamos 30 mil reais), começamos novas atividades voltadas para a educação infantil e para o céu decolonial. Estamos escrevendo um livro e artigos contando essas experiências. No momento, estamos também desenvolvendo outros projetos voltados para a promoção da equidade racial na educação escolar quilombola.
Como a cultura de matriz africana pode contribuir com a ciência?
A ciência é uma construção humana, coletiva. Portanto, é altamente dependente de fatores políticos, econômicos, culturais e sociais. Não é pura, ingênua e nem está fora da história. A Astronomia não nasce na Grécia. Povos africanos, muito antes, já observavam o céu, sistematizaram padrões, criaram calendários que buscavam materializar o tempo. Os Dogon e tantos outros povos africanos também detinham sistemas cognitivos avançados de “ciência e tecnologia”, embora não adotassem essas denominações.
O racismo epistêmico apagou essas e outras contribuições e personalidades negras. A cultura de matriz africana nos alerta sobre o perigo da “história única” e nos faz lembrar que o conceito de ciência é dinâmico, variando no tempo e no espaço. Além disso, a cultura de matriz africana traz para nós, no contexto da ciência moderna e contemporânea, que é altamente eurocêntrica, novas questões epistemológicas e ontológicas que envolvem a relação sujeito-objeto-natureza e cosmopercepções que não são excludentes e nem cosmofóbicas.
Em que momento você se deu conta do problema da ausência de negros na ciência?
A questão do racismo, em suas variadas intersecções de gênero, classe, origem geográfica e ontológica-espiritual, é uma questão para mim desde que eu existo. Quando eu entrei na graduação em Física, em 1997, essas grandes questões já estavam dadas por meio das falas racistas e preconceituosas vindas de colegas e professores e por meio da organização das instituições. Muitas dessas falas e estruturas organizacionais me acompanham até os dias de hoje, em todos os espaços acadêmicos que circulei e ainda circulo.
Então, podemos afirmar que a baixa presença de cientistas negros na ciência é manifestação do racismo estrutural na sociedade.
Absolutamente. O racismo subjetivo, institucional e estrutural na sociedade brasileira explica a subrepresentação de pessoas negras na ciência e em todas as esferas da sociedade brasileira. É o racismo estrutural, um delírio da supremacia branca, que tem sufocado e exterminado os corpos negros, determinando como estes nascem, vivem e morrem no Brasil.
Você teve professores negros, tanto no ensino fundamental quanto nos ensinos médio e superior?
Veja que absurdo! Só o racismo estrutural para explicar esse fenômeno curioso. Mesmo a Bahia sendo tão majoritariamente negra (mais de 80% da população), eu posso contar nos dedos de uma mão o número de professores negros/as que tive ao longo da minha trajetória acadêmica (educação básica e ensino superior) no meu estado natal.
Na pós-graduação na USP, tínhamos um professor negro, de um total de cerca de 35 professores no Departamento de Astronomia. Recentemente, tivemos também uma reunião da Academia de Ciências da Bahia, da qual orgulhosamente eu faço parte como Membro Correspondente e, novamente, dou-me conta da chocante subrepresentação de pessoas negras naquela sala que contava com metade dos membros da Academia.
Como a ausência de negros na ciência pode impactar a projeção profissional das crianças, adolescentes e jovens negros e negras?
Sem diversidade na ciência e na tecnologia, nunca teremos a inovação de fato. E, mais importante, nunca transformaremos o Brasil em suas estruturas de desigualdade. A ciência inclusiva e diversa é essencial para essa transformação. Crianças, adolescentes e jovens precisam de modelos positivos de negritude para a construção de suas subjetividades. A representação de cientistas negros/as é crucial nesse processo. E não se trata apenas da representação física. Refiro-me às representações materiais, simbólicas, epistemológicas e ontológicas da ciência e de seus cientistas.
Quais são as suas referências negras na ciência no Brasil e no exterior?
Tenho vários nomes de colegas que admiro e estimo, incluindo das Ciências Naturais, mas os nomes que listo a seguir são, de fato, as grandes referências para mim. No Brasil, eu cito o Abdias do Nascimento, Milton Santos, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Kabengele Munanga e Muniz Sodré. No exterior, Cheikh Anta Diop, Marimba Ani e, mais recentemente, Achille Mbembe.
Como é essa questão da presença de pesquisadores negros na Austrália e no Chile, lugares onde você também trabalhou?
Nos anos em que eu vivi nesses países, pesquisadores negros também eram altamente subrepresentados. Não havia qualquer discussão sobre essas temáticas, apesar das tensões indígenas nos dois países. Falava-se muito na Austrália, por exemplo, sobre a subrepresentação de mulheres. Mas, uma vez mais, as mulheres brancas cis-hetero normativas e bem nascidas. No Chile, nem as disparidades de gênero eram uma questão crucial discutida no ambiente científico. Sei que o debate sobre disparidade de gênero na Austrália avançou muito, ainda que completamente enviesado para o padrão normativo.
Como você analisa a existência ou a falta de políticas públicas e institucionais na academia sobre a carência de negros nas pesquisas?
Eu avalio como materialização e sintoma do racismo institucional. As políticas de ações afirmativas em todos os âmbitos da vida universitária (ingresso e permanência na graduação, pós-graduação e nos concursos públicos) são cruciais para reverter esse processo. E, por isso, a educação para as relações étnico-raciais é tão fundamental.
É preciso, de fato, entender a raça na relação com o outro. Racializar a ciência é, para mim, entender todo esse processo histórico, social e epistêmico que tem invisibilizado e exterminado os corpos negros da ciência, assim como tem fomentado o domínio de pessoas brancas, garantindo e distribuindo privilégios no fortalecimento de redes.
O que você tem a dizer a quem defende que a militância em favor do negro na ciência gera segregação em vez de justiça social e racial?
Pare de “mimimi”. Ouça mais e fale menos. Leia a história do seu país e do mundo. Reflita. Entenda o que significou 350 anos de um horrendo sistema escravocrata no Brasil e o que aconteceu com as pessoas negras no pós-abolição até a pandemia COVID-19. Analise com criticidade o que dizem os números de todos os indicadores sociais no que tange à vida das pessoas negras no Brasil. Viva a vida com pensamento e reflexão crítica, e não com base em achismo ou com as inverdades confortáveis ditas por gurus e pseudoespecialistas do YouTube. Não tenha medo de admitir os seus privilégios e de perceber o quanto o racismo só beneficia a minoria branca da população brasileira, silenciando e matando a maioria negra.
No mais, o choro é livre! Chegamos e não vamos retroceder, pelos que vieram antes, pelos que aí estão e por todos e todas que virão.
Qual é a importância de o pesquisador se engajar em atividades de divulgação científica, como o Akotirene Kilombo Ciência?
Des(construção) subjetiva, institucional e estrutural. Decolonização/contracolonização dos processos de pensar e fazer a ciência moderna e contemporânea, que não é neutra. Dar-se conta da realidade social brutal brasileira e do papel da ciência nisso tudo, seja para combater ou reafirmar as desigualdades sociais. Entender a ciência como um processo, que precisa acontecer com as pessoas.
Você sempre se interessou pela divulgação científica, enquanto pesquisador, ou teve um momento em que você despertou para essa atividade?
A divulgação científica sempre fez parte da minha existência. Nos anos de graduação e pós-doutorado, trabalhei muito com a divulgação de Física e Astronomia. Nos anos de pós-graduação, eu não fiz tanto quanto gostaria, mas, ainda assim, dava minhas escapulidas. Desde que cheguei à UFRGS, como professor e pesquisador em 2014, a extensão e a divulgação em ciências têm sido parte crucial do meu ethos de cientista e assim será para sempre. Não tenho como conviver na universidade sem esse importante exercício de cidadania que o meu ofício como cientista, funcionário da nação e divulgador de ciências, permite-me realizar.
Você ainda pré-adolescente, em Feira de Santana (BA), criou um grupo de ciências. Que grupo foi esse? O que inspirou você a já naquele momento se interessar pela ciência?
Sempre me interessei pela divulgação das ciências, desde criança. O céu e as grandes perguntas que a ancestralidade sempre me trouxeram foram e são inspiração para mim. Dos 12 aos 21 anos, fiz parte do Programa de Saúde do Adolescente (PROSAD) de Feira de Santana. Trabalhávamos (uma psicóloga, uma enfermeira, uma assistente social e vários adolescentes) com escolas/feiras no que tange à comunicação científica relacionada a doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids, também com dificuldades de aprendizagem, questões relacionadas às drogas e às diretrizes do recém-criado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Foram anos primorosos. Aos 13 anos, eu criei um clube de ciências no meu bairro. Foi uma iniciativa minha no âmbito do Programa Ciranda da Ciência da Fundação Roberto Marinho, que não durou muito porque eu não tinha ajuda e nem dinheiro de muita gente. Assistia muito ao Globo Ciência e me via fazendo pesquisas. Mas eu decidi que queria ser cientista ainda muito jovem, quando da passagem frustrada do cometa Halley, em 1986. No meu universo de criança, o mundo iria se acabar. Vivia ainda no Sul da Bahia, numa cidade chamada Valença. Foi nesse mesmo período que aconteceu um evento em casa (a queda de um raio) que foi muito traumático para mim. Associei esse fenômeno ao cometa. Depois, a minha família se mudou para a Ilha de Itaparica, de cujo céu tenho lindas recordações. Em seguida, fomos para Feira de Santana, onde fui viver relativamente perto a um Observatório, doado à Universidade de Feira de Santana, em 1992. Cresci indo ao Observatório Astronômico Antares, para onde voltei, anos mais tarde, como bolsista de Iniciação Científica do CNPq, desenvolvendo um projeto de pesquisa em Astronomia sob orientação da professora Vera Aparecida Fernandes Martin. E nunca mais parei.
Há algum tópico sobre o qual você gostaria de falar, mas deixamos de abordar na entrevista?
Eu, talvez, faço parte das poucas pessoas do Brasil profundo, atravessadas em suas múltiplas intersecções, que conseguiram realizar seus sonhos de se tornar um ou uma cientista. Hoje, não tenho dúvidas, só consegui realizar os meus sonhos porque tive, desde os primeiros momentos de minha vida, acesso às políticas públicas materializadas pela existência de programas como o PROSAD, escolas e universidades. As dificuldades foram muitas mas, não tenho dúvidas, sobretudo quando olho para a realidade do Chile e da Austrália, a educação pública, gratuita e de qualidade é crucial para alcançarmos a democracia plena no Brasil e combatermos o racismo estrutural.
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Confira relatos do projeto Akotirene publicados no Youtube:
Yamorô, uma das coordenadoras do projeto e Yakekerê do Território Kilombola COMPAZ, estuda Ciências Sociais na UFRGS e faz pesquisas de Iniciação Científica no Programa PROPESQ - “Ciência na Escola, Ciência na Sociedade”, sob supervisão de Alan Alves Brito.
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